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Artigo do Juiz de Direito da Comarca de Bauru, Dr. João Thomaz Diaz Parra

 

O artigo a seguir foi escrito no ano de 2005 e publicado em revista editada pela ABRAME – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MAGISTRADOS ESPÍRITAS e no livro intitulado “O TRABALHO DA MAGISTRATURA À LUZ DA DOUTRINA ESPÍRITA”, editado também em 2015 pelo IPAM – INSTITUTO PAULISTA DE MAGISTRADOS, publicado nas páginas 181/186.

CARIDADE COM OS PRESOS

A frase que serve de título ao presente artigo não é de nossa autoria, mas sim foi utilizada por um dos jornais da cidade de Penápolis (SP), em editorial que tecia comentários sobre o trabalho que lá tivemos a oportunidade de realizar, enquanto Juiz da 2ª Vara e Corregedor dos Presídios, em prol dos detentos e seus familiares.

O tema, que nunca deixou de ser atual, hoje o é ainda mais, mercê da grave crise que assola todo o sistema carcerário do País, e que é responsável pelos inúmeros motins e rebeliões que amiúde se verificam.

Muitos, certamente, não aceitam sequer refletir sobre o assunto, acastelados que estão no entendimento mesquinho de que criminoso deve sempre ser tratado como criminoso, e ponto final.

Não se discute que existem aqueles indivíduos que já nascem com extrema propensão para a prática de crimes, assim continuando por toda a vida. Seriam aqueles, digamos assim, que os adeptos da Antropologia Criminal, dentre os quais o notável psiquiatra italiano, César Lombroso, classificaram à conta de “criminosos natos”.

Mas a verdade é que isso não ocorre com toda a população carcerária. Muito pelo contrário, a maioria absoluta dos que se encontram atrás das grades lá está por outros motivos, aos quais a sociedade prefere fechar os olhos.

Sem dúvida alguma, os principais motivos da criminalidade são, dentre outros, os problemas sociais, familiares, o desemprego e os vícios em geral. Muitas vezes o indivíduo já nasce no meio do crime, tendo pais desajustados (quando os têm), passando a viver na miséria e fazendo da mendicância o seu meio de sobrevivência.

Confira-se, a propósito, o desabafo de um preso a uma pessoa que tentava lhe sensibilizar a respeito dos valores da vida: “Falar do valor da vida é coisa de rico, é pra quem tem casa, família, nunca passou fome, que teve comida todos os dias, teve pai e mãe cuidando dele, escola, remédio e médico. Valor da vida de pobre é a morte todos os dias, como nós, que vivemos na Praça da Sé, crescemos aqui  –  correndo da polícia, do povo, da chuva, da fome, da dor. Saí de casa porque o homem que minha mãe arrumou, depois de que meu pai morreu, começou a beber muito, brigava com nós, batia na gente e maltratava demais. Minha mãe não agüentava nós e ele. Saí de casa e vim para a Sé. Prá sobreviver tem que ser artista. Comecei a fazer como os outros meninos: acharcava, cheirava, fumava, etc. Primeiro fui para a FEBEM. Lá aprendi muita coisa. Finalmente chequei aqui, à universidade da vida do crime: a prisão (in Manual da Campanha da Fraternidade de 1997, editado pela CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, com o título “CRISTO LIBERTA DE TODAS AS PRISÕES”, pg. 220).

Urge, portanto, que a sociedade encare o delinqüente como sendo fruto de um problema que ela própria tem que se empenhar em resolver, procurando ser mais justa e fraterna.

E, quando se aquilata que no Brasil não existe a chamada prisão perpétua, nem tampouco é aplicada a pena de morte, logo se conclui que não haverá, sem dúvida, outra maneira de a sociedade se resguardar contra eventuais reincidências dos egressos das prisões, a não ser propiciando-lhes condições de retornarem ao convívio social com dignidade, mais dóceis do que quando nelas ingressaram.

Obviamente, as punições para os que violam as regras de convivência social devem sem dúvida alguma ocorrer, aplicando-se    –    como dizia há alguns anos certa personagem de novela   –  os rigores da Lei, mas a verdade é que a Justiça não pode, jamais, ser instrumento de pura vindita, devendo operar, isto sim, com humanidade e caridade, imbuída do propósito de regenerar aqueles que, por um motivo ou por outro, se enveredaram para a   senda do crime.

Assim devemos pautar nossa atuação, sobretudo nós, magistrados espíritas, cientes de que, por trás de toda a problemática já colocada em destaque, à sombra da maioria dos crimes, alojam-se muitas vezes comprometimentos cármicos ou então se situam processos obsessivos ou mesmo casos de possessão e subjugação, não se devendo olvidar ainda a existência incontestável de diferentes ordens de Espíritos, conforme o grau de perfeição  que tenham alcançado (ALLAN KARDEC, in “O LIVRO DOS ESPÍRITOS”, pergunta de nº 96).

Em nossa primeira visita à Cadeia Pública de Penápolis, no início de 1996, na chamada “visita correcional”, observamos que alguns presos “trocavam” o “marmitex” do jantar por um por um litro de leite em saquinho, fazendo o encaminhamento do produto para suas respectivas residências.

Tal constatação, que certamente não nos foi propiciada por acaso, abalou as fibras mais íntimas do nosso coração, mormente quando observamos filhos, esposas e companheiras dos presos enfileirando-se, no final da tarde, à porta da repartição, em busca do alimento que com certeza faltava em suas humildes residências porquanto o único esteio da família ali se encontrava segregado, sem condições, destarte, de prover as necessidades do lar, sujeitando-se, assim, num gesto de desprendimento, a ficar privado de uma das suas refeições diárias em benefício daqueles que outrora dependiam da sua força de trabalho para a sobrevivência.

Pois bem, debruçando-nos, de imediato, sobre as inovações que haviam sido introduzidas há pouco tempo pela Lei nº 9.099/95, ousamos substituir, nas chamadas “transações penais” (Lei citada, art. 76), o recolhimento de “multa” aos cofres do Estado pela entrega de “cestas básicas”, que então passaram a ser propostas pelo Ministério Público.

Assim, arrecadadas as cestas básicas a partir da aplicação de penas alternativas no Juizado Especial Criminal, passamos a destiná-las, por intermédio do Conselho da Comunidade (Lei nº 7.210/84, art. 80)  –   que também, sem qualquer demora, acabamos por instalar na Comarca    -,   às famílias de presos realmente necessitadas de ajuda.

Tempos depois, ao tomarmos conhecimento da criação, por parte da E. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, de um “Grupo de Trabalho” formado para apresentar alternativas para solucionar a crise do sistema de aplicação da pena e prisional (Processo CG Nº 1.243/97 – DEGE 5.3,  publicadas no D.O.J. de 06.11.1997, Parte 1, pg. 2), submetemos a idéia àquele órgão, nos seguintes termos:

Tal iniciativa, se bem que não prevista em Lei ou mesmo nas Normas de Serviço dessa E. Corregedoria, tem proporcionado resultados altamente confortadores, em vários aspectos, a começar pelo próprio clima de maior tranqüilidade que passou a reinar entre os detentos, sabedores de que seus familiares estão recebendo o auxílio de que necessitam.

A providência também se reveste, indiscutivelmente, de acentuado caráter pedagógico, na medida em que mostra ao reeducando que a sociedade, longe de o desprezar, está pelo menos tentando minimizar o seu sofrimento no cárcere.

Conseqüência direta disso é que, embora ainda não possua nenhum dado estatístico a respeito, arrisco desde já concluir que houve efetiva diminuição no índice de reincidência registrado na Comarca.

Ao mesmo tempo em que apresento a Vossa Excelência, a título de sugestão, a iniciativa aqui adotada com vistas a tornar mais digno e humano o cumprimento da pena, permaneço na expectativa de receber orientação a respeito da sua efetiva viabilidade“.

Para o nosso contentamento, a sugestão foi acolhida, tendo sido publicada, na Edição do Diário Oficial do Estado de São Paulo do dia 09.12.1997, decisão no sentido de que passava ela a integrar as conclusões já apresentadas pelo “Grupo de Trabalho” dantes mencionado, instituído com vistas ao aprimoramento dos sistemas de aplicação da pena e prisional no Estado de São Paulo.

Júbilo maior, sem dúvida alguma, decorreu da nossa satisfação íntima, daquela leveza d’alma que a prática do bem e da caridade proporciona, tudo isso sem contar com o reconhecimento e o respeito dos presos, alguns dos quais, em nossas visitas mensais, deixavam rolar lágrimas ao nos agradecerem pela ajuda que estávamos dispensando aos seus familiares.

Lembremo-nos de que o Evangelho nos convida a avançarmos além da simples prolação de uma sentença, aconselhando-nos a que olhemos  para o sentenciado com compaixão e que façamos a ele mais do que aquilo que a Lei pode exigir.

Nossa Justiça, naturalmente, não pode jamais ser sinônimo de vingança, nem tampouco se restringir ao cumprimento frio de Leis. Precisa ser uma Justiça regeneradora, curativa. “Se vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (JESUS, Mateus, 5,20).

 

 

                                     JOÃO THOMAZ DIAZ PARRA

                                        Juiz de Direito em Bauru-SP

                                                    Julho/2005

 
 

Luiz Felipe Di Iorio Monte Bastos

Jornalista (MTB nº 46.736-SP) graduado pela Universidade Católica de Santos -UniSantos- e pós graduado no nível de especialização pela Fundação Cásper Líbero.

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